Quando o grupo argentino Beat Boys tocou a introdução de ``Alegria Alegria´´ no teatro Record numa noite de 1967, a musica brasileira entrou em transe. Conduzida por guitarras elétricas e com uma letra moderna, cinematográfica, cheia de referencias a ícones da cultura pop e da vida moderna, a marcha, quase uma paródia de ``A Banda´´, vencedora do festival anterior (o que já era
uma pista da intenção de um evolução), defendida por um Caetano Veloso de terno
xadrez marrom e camisa gola rolê laranja, em oposição aos smokings habituais,
fez com que público (que a princípio vaiou), crítica e concorrentes viajassem
no tempo e no espaço. E quando voltaram, o ponto em que estavam acomodados não
existia mais. As barreiras entre o rock e a música brasileira estavam rompidas.
A Jovem Guarda com seus caderninhos e namoradinhas estava com os dias contados.
A Bossa Nova já não era mais tão nova assim. Começavam os tempos do
tropicalismo...
O happening de "Alegria, Alegria" e "Domingo no parque" (de Gilberto Gil - irmão musical de Caetano - e defendida pelo cantor e Os Mutantes com arranjos do genial maestro Rogerio Duprat)no melhor festival de música brasileira de todos os tempos, abriu as portas para que o tropicalismo tomasse forma. "Alegria, Alegria" ficou em quarto lugar e a canção de Gil em segundo. Por isso quando o segundo Lp de Caetano chegou às lojas em janeiro de 1968, com sua capa colorida, bem ao estilo psicodélico que dominava o rock mundial, o público já sabia que a fase gilbertiana de "Domingo" - seu primeiro Lp dividido com Gal Costa - havia ficado pra trás. O Caetano de então era um astro pop, um compositor de ousadia estética que desafiava o pensamento conservador dos militares instalados no poder e questionava seus conceitos de ordem: "Por que não?" .E em tempos de não, os tropicalistas optavam pelo sim. Aceitavam em seu caldeirão toda e qualquer referência, todos os estilos cabiam nas suas músicas. A antropofagia de Oswald de Andrade aliada aos conceitos de pop art e aldeia global de Andy Wharol e McLuhan era o que os guiava. E quem levasse o disco de Caetano pra casa, constataria isso. No Lp, cheio de cores e nomes, trafegavam automóveis que pareciam voar ao lado de atrizes de cinema, ícones da música brasileira, existencialismo, Coca-Cola, programas de Tv, personagens de quadrinhos, cinema novo, revolução cubana, o Brasil rural e o Brasil moderno. A música, entre outras coisas, tinha pitadas de rock inglês, samba-canção, música latina, marcha-rancho, bossa-nova e música de vanguarda.
O início do Lp trazia uma brincadeira do baterista Dirceu testando o microfone em meio a barulho de aves, essa era a abertura de "Tropicália", a canção. Primeiramente batizada como "Mistura Fina", marca de cigarros que Caetano fumava na época, a música recebeu seu título definitivo, e que acabou sendo o mesmo do movimento que ele organizava, inspirado numa obra - um labirinto - do anárquico artista plástico Helio Oiticica (autor também da frase "Seja marginal, seja herói", muito usada pelos tropicalistas). Com arranjos do maestro Julio Medaglia e seu clima tenso, é uma irmã próxima de "Alegria Alegria" com sua letra glauberiana que junta os ídolos da música brasileira do momento (Roberto Carlos, Elis Regina e Chico Buarque) com Carmen Miranda, a bossa de Noel e a música da roça. Um verdadeiro cartão de apresentação do seu movimento bem moderno. Em seguida "Clarice" - a preferida do produtor Manoel Berenbein - com letra de Capinan, atacando a caretice e a castidade, e cheia de mudanças de ritmo, foi definida por Caetano como uma "canção monstra", "com um pedaço nada a ver como outro". "No dia em que eu vim-me embora", canção feita em parceria com Gil, traz ecos de rock inglês, com um destacado teclado, e uma letra que é uma crônica - talvez autobiográfica - sobre a saída de um rapaz do interior rumo à capital com uma reflexão existencialista sobre acontecimentos que são marcantes na vida do indivíduo e porém não significam nada para o mundo ("No dia em que eu vim-me embora não teve nada demais"). A já conhecida "Alegria Alegria" parece mais normal com seus pares no Lp que com suas concorrentes no festival. O bolero "Onde andarás", com letra de Ferreira Gullar, mistura o jazz west coast de Chet Baker com Nelson Gonçalves. "Anunciação", parceria com Rogério Duarte, empresário do cantor e autor do desenho da capa, alarga o psicodelismo e "Superbacana", um rock cheio de gírias e referências, é tocada pelo RC7 (banda de Roberto Carlos na época) ; a construção do Aterro do Flamengo como mote para "Paisagem útil", um intertexto - recurso usado com frequencia nas letras do compositor - com "Inútil paisagem", de Tom Jobim, que reflete questionador sobre as modificações causadas pela modernidade. Destaque para o cantor parodiando o estilo de Orlando Silva em determinadas partes. "Clara" traz de volta o som mais tradicional do álbum "Domingo", associação reforçada pela participação de Gal Costa. "Soy loco por ti América", música feita por Gil e Capinam no dia da morte de Che Guevara, exalta em ritmo de rumba os ideiais revolucionários de uma unidade latinoamericana cantanda em encantador portunhol ("("El nombre del hombre muerto/Antes que a definitiva/Noite se espalhe em Latino américa/El nombre del hombre es pueblo") que materializa na forma a união sonhada no conteúdo. Uma "Ave Maria" em latim com um belo violão (que a falta de importância dada à ficha técnica na época não permite saber quem toca) abre alas para o apoteótico encerramento com "Eles", outra parceria dele com Gil. Tocada pelos Mutantes a canção com ares de repente trata do maniqueísmo ("Falam com franqueza do bem e do mal/Crêem na existência do bem e do mal) e da hipocrisia vigente no país ("Alegres ou tristes são todos felizes durante o Natal") em meio a viagens da guitarra de Sergio Dias e do orgão de Arnaldo Baptista. No final, Caetano encerra dizendo o que se constataria pouco tempo depois:"Os Mutantes são demais!"
Alguns meses após o lançamento desse disco, Gilberto Gil lançaria o seu, gravado em companhia dos Mutantes e de Rogerio Duprat, e os tropicalistas todos juntos lançariam o histórico disco manifesto "Tropicália ou Panis et circenses" que entrou pra história como o "Sargent Peppers" brasileiro. Dez anos depois de João Gilberto (ídolo máximo de Caetano) conduzir a música brasileira à modernidade, a Tropicália a virava outra vez de pernas pro ar. Só que o Brasil de Costa e Silva já não tinha mais nada a ver com o de JK e a postura andrógina e cada vez mais anárquica de Caetano e Gil não combinaram nem um pouco com o conservadorismo dos militares e da direita, a esquerda com suas violas e boiadeiros também não viu com bons olhos o internacionalismo (vejam que contradição!) de seu som e o grande público, sem acesso à maioria dos elementos culturais que formavam o som e a atitude tropicalista, também pouco entendeu. A cabeça de Caetano e Gil avançava rápido demais para a velocidade em que andava(?) o país. Presos no final de 1968, com o endurecimento do regime, os dois foram expulsos do país e, por sorte ou por castigo, pararam em Londres, aonde aprenderam in loquo as lições do pop e do rock inglês até voltarem consagrados nos braços do povo - que só então começava a assimilar as lições tropicalistas.
Se hoje, Caetano é reconhecido como um dos principais compositores da música brasileira, adorado internacionalmente por artistas que vão de Beck a Almodóvar , esse disco, unanimidade nas listas dos discos mais importantes da história, foi o pontapé inicial. Foi com ele que Caetano deflagrou a última grande revolução da música brasileira...
O happening de "Alegria, Alegria" e "Domingo no parque" (de Gilberto Gil - irmão musical de Caetano - e defendida pelo cantor e Os Mutantes com arranjos do genial maestro Rogerio Duprat)no melhor festival de música brasileira de todos os tempos, abriu as portas para que o tropicalismo tomasse forma. "Alegria, Alegria" ficou em quarto lugar e a canção de Gil em segundo. Por isso quando o segundo Lp de Caetano chegou às lojas em janeiro de 1968, com sua capa colorida, bem ao estilo psicodélico que dominava o rock mundial, o público já sabia que a fase gilbertiana de "Domingo" - seu primeiro Lp dividido com Gal Costa - havia ficado pra trás. O Caetano de então era um astro pop, um compositor de ousadia estética que desafiava o pensamento conservador dos militares instalados no poder e questionava seus conceitos de ordem: "Por que não?" .E em tempos de não, os tropicalistas optavam pelo sim. Aceitavam em seu caldeirão toda e qualquer referência, todos os estilos cabiam nas suas músicas. A antropofagia de Oswald de Andrade aliada aos conceitos de pop art e aldeia global de Andy Wharol e McLuhan era o que os guiava. E quem levasse o disco de Caetano pra casa, constataria isso. No Lp, cheio de cores e nomes, trafegavam automóveis que pareciam voar ao lado de atrizes de cinema, ícones da música brasileira, existencialismo, Coca-Cola, programas de Tv, personagens de quadrinhos, cinema novo, revolução cubana, o Brasil rural e o Brasil moderno. A música, entre outras coisas, tinha pitadas de rock inglês, samba-canção, música latina, marcha-rancho, bossa-nova e música de vanguarda.
O início do Lp trazia uma brincadeira do baterista Dirceu testando o microfone em meio a barulho de aves, essa era a abertura de "Tropicália", a canção. Primeiramente batizada como "Mistura Fina", marca de cigarros que Caetano fumava na época, a música recebeu seu título definitivo, e que acabou sendo o mesmo do movimento que ele organizava, inspirado numa obra - um labirinto - do anárquico artista plástico Helio Oiticica (autor também da frase "Seja marginal, seja herói", muito usada pelos tropicalistas). Com arranjos do maestro Julio Medaglia e seu clima tenso, é uma irmã próxima de "Alegria Alegria" com sua letra glauberiana que junta os ídolos da música brasileira do momento (Roberto Carlos, Elis Regina e Chico Buarque) com Carmen Miranda, a bossa de Noel e a música da roça. Um verdadeiro cartão de apresentação do seu movimento bem moderno. Em seguida "Clarice" - a preferida do produtor Manoel Berenbein - com letra de Capinan, atacando a caretice e a castidade, e cheia de mudanças de ritmo, foi definida por Caetano como uma "canção monstra", "com um pedaço nada a ver como outro". "No dia em que eu vim-me embora", canção feita em parceria com Gil, traz ecos de rock inglês, com um destacado teclado, e uma letra que é uma crônica - talvez autobiográfica - sobre a saída de um rapaz do interior rumo à capital com uma reflexão existencialista sobre acontecimentos que são marcantes na vida do indivíduo e porém não significam nada para o mundo ("No dia em que eu vim-me embora não teve nada demais"). A já conhecida "Alegria Alegria" parece mais normal com seus pares no Lp que com suas concorrentes no festival. O bolero "Onde andarás", com letra de Ferreira Gullar, mistura o jazz west coast de Chet Baker com Nelson Gonçalves. "Anunciação", parceria com Rogério Duarte, empresário do cantor e autor do desenho da capa, alarga o psicodelismo e "Superbacana", um rock cheio de gírias e referências, é tocada pelo RC7 (banda de Roberto Carlos na época) ; a construção do Aterro do Flamengo como mote para "Paisagem útil", um intertexto - recurso usado com frequencia nas letras do compositor - com "Inútil paisagem", de Tom Jobim, que reflete questionador sobre as modificações causadas pela modernidade. Destaque para o cantor parodiando o estilo de Orlando Silva em determinadas partes. "Clara" traz de volta o som mais tradicional do álbum "Domingo", associação reforçada pela participação de Gal Costa. "Soy loco por ti América", música feita por Gil e Capinam no dia da morte de Che Guevara, exalta em ritmo de rumba os ideiais revolucionários de uma unidade latinoamericana cantanda em encantador portunhol ("("El nombre del hombre muerto/Antes que a definitiva/Noite se espalhe em Latino américa/El nombre del hombre es pueblo") que materializa na forma a união sonhada no conteúdo. Uma "Ave Maria" em latim com um belo violão (que a falta de importância dada à ficha técnica na época não permite saber quem toca) abre alas para o apoteótico encerramento com "Eles", outra parceria dele com Gil. Tocada pelos Mutantes a canção com ares de repente trata do maniqueísmo ("Falam com franqueza do bem e do mal/Crêem na existência do bem e do mal) e da hipocrisia vigente no país ("Alegres ou tristes são todos felizes durante o Natal") em meio a viagens da guitarra de Sergio Dias e do orgão de Arnaldo Baptista. No final, Caetano encerra dizendo o que se constataria pouco tempo depois:"Os Mutantes são demais!"
Alguns meses após o lançamento desse disco, Gilberto Gil lançaria o seu, gravado em companhia dos Mutantes e de Rogerio Duprat, e os tropicalistas todos juntos lançariam o histórico disco manifesto "Tropicália ou Panis et circenses" que entrou pra história como o "Sargent Peppers" brasileiro. Dez anos depois de João Gilberto (ídolo máximo de Caetano) conduzir a música brasileira à modernidade, a Tropicália a virava outra vez de pernas pro ar. Só que o Brasil de Costa e Silva já não tinha mais nada a ver com o de JK e a postura andrógina e cada vez mais anárquica de Caetano e Gil não combinaram nem um pouco com o conservadorismo dos militares e da direita, a esquerda com suas violas e boiadeiros também não viu com bons olhos o internacionalismo (vejam que contradição!) de seu som e o grande público, sem acesso à maioria dos elementos culturais que formavam o som e a atitude tropicalista, também pouco entendeu. A cabeça de Caetano e Gil avançava rápido demais para a velocidade em que andava(?) o país. Presos no final de 1968, com o endurecimento do regime, os dois foram expulsos do país e, por sorte ou por castigo, pararam em Londres, aonde aprenderam in loquo as lições do pop e do rock inglês até voltarem consagrados nos braços do povo - que só então começava a assimilar as lições tropicalistas.
Se hoje, Caetano é reconhecido como um dos principais compositores da música brasileira, adorado internacionalmente por artistas que vão de Beck a Almodóvar , esse disco, unanimidade nas listas dos discos mais importantes da história, foi o pontapé inicial. Foi com ele que Caetano deflagrou a última grande revolução da música brasileira...
(Texto: Leandro L. Rodrigues)
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