Cartola é uma das maiores lendas da MPB. Sambista de talento, na ativa desde 1928, participando inclusive dos primórdios do que depois se tornou a Estação Primeira de Mangueira, da qual ele foi membro fundador e compositor, só teve a oportunidade de gravar um disco em 1974 aos 66 anos, e mesmo assim por uma gravadora independente, a Discos Marcus Pereira .Até então, passara a
vida alternando momentos de relativo respeito e notoriedade como compositor -
integrou, ao lado de Pixinguinha e Donga, entre outros, o famoso grupo
convocado por Villa-Lobos para gravar música brasileira a bordo do navio
Uruguai, teve sambas de enredo campeões no carnaval, vendeu músicas a troco de
nada para artistas que subiam o morro para comprar composições e apresentou
programas na rádio - com tempos difíceis de biscates e subempregos - foi
aprendiz de tipógrafo, pedreiro (profissão onde ganhou o apelido que o
acompanhou por toda vida), zelador, guardador de carros, etc. Redescoberto por
Stanislaw Ponte Preta, no final dos anos 50, dizia a lenda (uma das tantas!)
que havia morrido, virou dono de restaurante, o tão falado “Zicartola” (que
segundo consta, foi à falência devido à falta de talento do generoso artista
como comerciante), foi regravado por Elizeth Cardoso e Nara Leão, reconquistou
o prestígio e passou a ser objeto de culto dos estudantes politizados dos anos
60. Só por conter seus dois maiores clássicos, “O mundo é um moinho” e “As
rosas não falam”, seu segundo álbum, gravado em 1976, já poderia ser
considerado um marco na música brasileira. Mas ele tinha ainda mais. Muito
mais...
Com a famosa capa do cantor com sua esposa Dona Zica na janela de casa no Morro da Mangueira (casa essa que se tornou lendária por atrair a visita de artistas, jornalistas e intelectuais que partiam em peregrinação ao morro a procura do artista, o que o levou a se mudar da Mangueira anos mais tarde), um conjunto de músicos que reunia Garoto, Altamiro Carrilho, Guinga, Elton Medeiros, entre outros e arranjos de Dino 7 cordas, Cartola 1976 (ou Cartola II, como preferem alguns, ou simplesmente Cartola da janela, como chamam outros) traz o compositor no auge da forma. “O mundo é um moinho” abre o disco com a flauta de Altamiro e o violão de Guinga emoldurando uma das mais tristes e desesperançadas letras do cancioneiro nacional (“De cada amor tu herdarás só o cinismo, quando notares estás à beira de um abismo...”) cantada na divina voz de seu criador e transformando-se em clássico absoluto. O motivo da canção, que depois receberia regravações marcantes de Ney Matogrosso e Cazuza, também é cercado de lendas, a única coisa certa é que foi composta para a filha de criação do compositor. Na sequencia vem “Minha”, com cuíca, reco-reco, tamborim, trombone, surdo, tamborim e violão de sete cordas mandando brasa num samba típico de Cartola, com suas letras poéticas e reveladoras de seu tempo e espaço ("Como mentiram as cartomantes, como eram falsas as bolas de cristal...”), em seguida, o mestre grava um samba feito nos anos 40, mais uma declaração de amor ao Morro da Mangueira e sua gente: Sala de Recepção. “Habitada por gente simples e tão pobre que só tem o Sol que a todos cobre, como podes, Mangueira ,cantar?” , pergunta o compositor em dueto com a filha Creusa, a musa de “O mundo é um moinho”, que também aparece em “Ensaboa” (“Ensaboa, mulata, ensaboa”), um samba meio toada, uma letra típica das canções de trabalho que remete às lavadeiras com um bela viola de 10 cordas tocada por Zé Menezes. "Ensaboa" receberia anos mais tarde uma interessante releitura de Marisa Monte colando-a com "Lamento de lavadeira" de Monsueto Menezes e "Sorrow, tears and blood" do revolucionário compositor nigeriano Fela Kuti. “Não posso viver sem ela”, outro samba dos anos 40 presente no álbum, é mais um samba embolado no melhor estilo do poeta mangueirense e abre alas para “Preciso me encontrar”, música do portelense Candeia, gravada de forma sublime neste álbum com destaque para a belíssima introdução com o fagote de Aírton Barbosa. Essa gravação ganharia grande destaque mais de vinte anos depois de seu lançamento ao colaborar de maneira sublime como trilha de uma bela cena do premiado filme “Cidade de Deus”. O mestre ainda traria para o álbum, outro compositor da velha guarda: Silas de Oliveira, o mestre do Império Serrano que morrera anos antes numa roda de samba, e sua “Senhora tentação”. "Aconteceu" e "Sei chorar" são dois deliciosos sambas embolados do mangueirense com destaque para o trombone de Nelson Martins dos Santos e Elton Medeiros na caixa de fósforos. “As rosas não falam”, que se consagrou com a gravação no mesmo ano de Beth Carvalho, dispensa apresentações e comentários. Com o belo trabalho da flauta de Altamiro Carrilho e o cavaquinho de Garoto, a bela melodia casa de forma perfeita com uma das letras mais poéticas de um dos letristas mais brilhantes e sem instrução da nossa vasta galeria. O disco ainda traz outras composições que se tornaram clássicos de Cartola como a belíssima “Peito vazio”, que ganhou destaque ao integra a trilha de uma novela na voz de Lucinha Araújo (ela mesmo! A mãe de Cazuza) e “Cordas de aço”, uma canção que retrata de forma magistralmente poética a relação do compositor com seu violão e encerra de forma sublime um álbum que já nasceu clássico.
Cartola viveria mais alguns anos após esse disco. Voltaria a desfilar na Mangueira, após quase trinta anos de ausência, faria shows por todo o Brasil, realizaria o sonho da casa própria, morrendo de câncer aos 72 anos. Saiu da vida para entrar para história. E esse disco é a prova inconteste de sua genialidade. Pois, como disse seu amigo Nelson Sargento: "o Cartola não existiu, foi um sonho que a gente teve".
Com a famosa capa do cantor com sua esposa Dona Zica na janela de casa no Morro da Mangueira (casa essa que se tornou lendária por atrair a visita de artistas, jornalistas e intelectuais que partiam em peregrinação ao morro a procura do artista, o que o levou a se mudar da Mangueira anos mais tarde), um conjunto de músicos que reunia Garoto, Altamiro Carrilho, Guinga, Elton Medeiros, entre outros e arranjos de Dino 7 cordas, Cartola 1976 (ou Cartola II, como preferem alguns, ou simplesmente Cartola da janela, como chamam outros) traz o compositor no auge da forma. “O mundo é um moinho” abre o disco com a flauta de Altamiro e o violão de Guinga emoldurando uma das mais tristes e desesperançadas letras do cancioneiro nacional (“De cada amor tu herdarás só o cinismo, quando notares estás à beira de um abismo...”) cantada na divina voz de seu criador e transformando-se em clássico absoluto. O motivo da canção, que depois receberia regravações marcantes de Ney Matogrosso e Cazuza, também é cercado de lendas, a única coisa certa é que foi composta para a filha de criação do compositor. Na sequencia vem “Minha”, com cuíca, reco-reco, tamborim, trombone, surdo, tamborim e violão de sete cordas mandando brasa num samba típico de Cartola, com suas letras poéticas e reveladoras de seu tempo e espaço ("Como mentiram as cartomantes, como eram falsas as bolas de cristal...”), em seguida, o mestre grava um samba feito nos anos 40, mais uma declaração de amor ao Morro da Mangueira e sua gente: Sala de Recepção. “Habitada por gente simples e tão pobre que só tem o Sol que a todos cobre, como podes, Mangueira ,cantar?” , pergunta o compositor em dueto com a filha Creusa, a musa de “O mundo é um moinho”, que também aparece em “Ensaboa” (“Ensaboa, mulata, ensaboa”), um samba meio toada, uma letra típica das canções de trabalho que remete às lavadeiras com um bela viola de 10 cordas tocada por Zé Menezes. "Ensaboa" receberia anos mais tarde uma interessante releitura de Marisa Monte colando-a com "Lamento de lavadeira" de Monsueto Menezes e "Sorrow, tears and blood" do revolucionário compositor nigeriano Fela Kuti. “Não posso viver sem ela”, outro samba dos anos 40 presente no álbum, é mais um samba embolado no melhor estilo do poeta mangueirense e abre alas para “Preciso me encontrar”, música do portelense Candeia, gravada de forma sublime neste álbum com destaque para a belíssima introdução com o fagote de Aírton Barbosa. Essa gravação ganharia grande destaque mais de vinte anos depois de seu lançamento ao colaborar de maneira sublime como trilha de uma bela cena do premiado filme “Cidade de Deus”. O mestre ainda traria para o álbum, outro compositor da velha guarda: Silas de Oliveira, o mestre do Império Serrano que morrera anos antes numa roda de samba, e sua “Senhora tentação”. "Aconteceu" e "Sei chorar" são dois deliciosos sambas embolados do mangueirense com destaque para o trombone de Nelson Martins dos Santos e Elton Medeiros na caixa de fósforos. “As rosas não falam”, que se consagrou com a gravação no mesmo ano de Beth Carvalho, dispensa apresentações e comentários. Com o belo trabalho da flauta de Altamiro Carrilho e o cavaquinho de Garoto, a bela melodia casa de forma perfeita com uma das letras mais poéticas de um dos letristas mais brilhantes e sem instrução da nossa vasta galeria. O disco ainda traz outras composições que se tornaram clássicos de Cartola como a belíssima “Peito vazio”, que ganhou destaque ao integra a trilha de uma novela na voz de Lucinha Araújo (ela mesmo! A mãe de Cazuza) e “Cordas de aço”, uma canção que retrata de forma magistralmente poética a relação do compositor com seu violão e encerra de forma sublime um álbum que já nasceu clássico.
Cartola viveria mais alguns anos após esse disco. Voltaria a desfilar na Mangueira, após quase trinta anos de ausência, faria shows por todo o Brasil, realizaria o sonho da casa própria, morrendo de câncer aos 72 anos. Saiu da vida para entrar para história. E esse disco é a prova inconteste de sua genialidade. Pois, como disse seu amigo Nelson Sargento: "o Cartola não existiu, foi um sonho que a gente teve".
(Texto: Leandro L.Rodrigues)
Arrasou no texto!
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