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quarta-feira, 9 de março de 2016

Os Novos Bahianos - É Ferro Na Boneca (1970)








 Em meio a repressão imposta pela ditadura militar no Brasil, restou aos jovens rebeldes duas formas de expressão: ou embarcar na aventura salvacionista de esquerda e tentar combater frontalmente, com desigualdade brutal de forças, o aparato repressor do Estado ou desafia-lo de forma individual e anárquica (à maneira como vinha procedendo uma boa parte dos rebeldes do mundo inteiro ao estabelishment tecnológico), colocando-se pessoalmente contra os valores e a tradição da velha sociedade, derrubando tabus, reavaliando a importância da família consanguínea, questionando o trabalhismo vigente, fazendo uso de cannabis e LSD (se o sistema conseguia se impor no controle da realidade, não conseguiria controlar as mentes individualmente), se aproximando da filosofia oriental e mantendo uma vida totalmente oposta à que pregava o sistema. E os Novos Baianos foram os grandes porta-vozes musicais da galera que optou pelo segundo caminho.
Unidos pelo tropicalista Tom Zé, o trio formado pela dupla de compositores Luiz Galvão (letrista e coordenador artístico da banda. Foi para ele que o tradicional empresário Marcos Lázaro, sem conseguir compreender seu papel na banda, lançou o famoso: “mas nem um pandeirinho?”) e Moraes Moreira e o talentoso vocalista Paulinho Boca de Cantor, logo se juntou à niteroiense, então aspirante à atriz, Baby Consuelo e ao grupo baiano Leif’s (composto pelos irmãos Pepeu e Jorginho Gomes e pelo baixista Dadi), para montar o anárquico espetáculo “O Desembarque dos Bichos no Dia do Juízo”, que causou frisson e admiração em Salvador, e com a cuca cheia de músicas e ideias partir para o centro São Paulo/Rio de Janeiro. Logo caíram nas graças do produtor João Araújo e entraram nos estúdios da RGE para gravar seu primeiro disco, o histórico “É ferro na boneca!”. Mostrando logo a que veio, o disco abre com a poderosa faixa-título, um sucesso imediato que apresenta ao Brasil a poderosa guitarra de Pepeu Gomes numa genial letra de Galvão que mistura linguagem de quadrinhos com o concretismo de Pignatari e até bordão de radialista esportivo. Sucesso imediato! Ganhando as rádios e levando a banda tanto para programas populares como os de Hebe Camargo e Chacrinha quanto para programas “cabeça” como o de Fernando Faro, a música proporcionou o desembarque musical dos “Os Novos Bahianos” (nessa época era esta a grafia que usavam) na mainstream nacional. De saída para o exílio, Caetano Veloso deu sua aprovação em forma de dica cheia de sentidos: “Enquanto nós cantarmos, ferro na boneca. Ferro na boneca. Mesmo que não dê em nada, eu quero seus lábios abertos numa sugesta geral.” “Eu de adjetivos” vem em seguida, num clima de psicodelia total, fazendo a ponte direta entre Haight-Ashbury com Arembepe e Ipanema. “Outro mambo, outro mundo” aparece na “velocidade fuga, na velocidade da pulga” e com um delicioso portunhol de Paulinho Boca. “Colégio de Aplicação”, música nascida durante um ensaio do “Desembarque dos Bichos...” e conduzida pelo marcante violão de Moraes, é uma típica canção do final dos anos 60, homenageando um colégio de Salvador, famoso por ter as melhores cabeças jovens e as moças mais bonitas (“No céu, azul,azul fumaça, uma nova raça/Saindo dos prédios para as praças, uma nova raça).”A casca de banana que eu pisei” é um xote estradeiro com clima de "viagem" de ônibus pela Rio/Bahia e citações ao prestigiado maestro baiano Carlos Lacerda, o governador dos teclados e ao sambista Riachão. “Dona Nita e Dona Helena” é um rock cantado por Moraes, que tem como título o nome de sua mãe e da de Galvão, e ganha força com a orquestração do maestro Chiquinho de Moraes. Som de caixinha de música e entra em cena “Se eu quiser compro flores”, música que integrou a trilha do clássico filme marginal/desbunde brasileiro “Meteorango Kid” (estrelado por Lula Martins que anos depois faria a capa do estonteante “Acabou Chorare”), com mais psicodelia tropicalista e referências a viagens espaciais de todos os tipos recheadas com teclados e guitarras. “E o samba me traiu” mostra que o samba já estava no radar da banda mesmo antes de serem “convertidos” por João Gilberto. Aqui o destaque é mais uma vez os arranjos de Chiquinho de Moraes (orquestrações essas que foram ideia do atuante produtor João Araújo que praticamente criou oi disco junto com a banda). “Baby Consuelo” , mostra mais uma vez a influência do tropicalismo nesse momento do grupo e homenageia a futura grande estrela da banda que mal aparece neste Lp de estreia. Aliás, se este álbum tem uma grande falha, essa é o pequeno espaço dado para a voz de Baby. “Tangolete”, que mais tarde seria regravada pela banda em outra roupagem no também fantástico “Vamos pro mundo”, é um tango com mais uma divertida letra de Galvão (“E os bêbados calem a boca, não quero rimas de amor.”) e uma interpretação impecável de Paulinho Boca que nos remete aos cabarés baianos. No início uma homenagem ao amigo Gastão e ao maestro Hector Lenha Fietta. Que faz da sua maravilhosa orquestração um dos destaques dessa bela gravação. “Curto de véu e grinalda” é rock n’roll com Baby Consuelo mostrando a força de seus vocais, a beleza de sua voz e questionando os valores do casamento religioso. Uma das grandes sacadas dessa letra é o uso do termo “senhoros e senhoras” (que foneticamente resulta em “sem ouros e sem horas”). Mais um golaço! Em “Juventude sexta e sábado”,além do talento fora do comum de Galvão como letrista, o baixo de Dadi aparece exuberante, como em “Ferro na Boneca”, mostrando para os ouvidos mais espertos que um dos grandes baixistas do país estava despontando. “De vera” (vera anagrama de erva), mais um sucesso desse início de carreira, encerra o Lp com o “Leif’s” brilhando mais uma vez. Em versão diferente da apresentada no decadente V Festival de Música Brasileira da Record (1969), onde foram proibidas as guitarras elétricas (!), essa gravação traz o swing da bateria de Jorginho e a guitarra de Pepeu colorindo esse rock malandro com cara de Brasil bem característico do grupo. 
“Salve-se quem puder. O negócio é música. A Bahia não pode parar”, dizia o texto de Augusto de Campos na contracapa do disco. E não pararam. Depois dessa estreia retumbante, mudaram a grafia do nome, anexaram oficialmente os "Leif's" Pepeu, Jorginho e Dadi como membros do grupo, colecionaram prisões, aprenderam o silêncio com João Gilberto, gravaram mais quatro estupendos Lps - três deles obrigatórios em qualquer antologia/coleção de respeito que inclua música brasileira - e caíram nas armadilhas mercadológicas, terminando desfalcados e como uma caricatura do que um dia foram. Mas foi com esse Lp de estréia que a geração baseada descobriu sua trilha sonora. E a música brasileira viu nascer uma de suas mais geniais e criativas bandas.



(Texto: Leandro L. Rodrigues)

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