Há dias que
me cobram um novo texto a ser publicado nesse espaço, faz um bom tempo que não
publico nada por aqui, não por falta de vontade, mas por razões alheias a minha
vontade.Não diria que estou passando por um ótimo momento em minha vida, nem por
isso vou escrever sobre como a vida é injusta ou descrever alguma visão
pessimista sobre determinado assunto.Portanto não escreverei sobre Kafka e o
incompreensível que nos aprisiona e que pode nos levar a um fim trágico,
tampouco vou usar um momento de instabilidade para pregar alguma visão
religiosa(o que não tenho)nem recomendar o último best seller de autoajuda, o
que não faria nem com o meu inimigo;afinal há formas mais eficazes de tortura.
Mesmo no momento em que escrevo ainda não sei sobre o que escreverei, já que
tenho muito a dizer e tão pouca inspiração para fazê-lo de uma forma que valha a
pena ser lido. Sabemos que grande parte do que é aqui publicado aborda o mundo
da música, porém hoje quero falar de música mas sem falar de música(calma não
vou "caetanear", pelo menos espero que não). Numa rápida reflexão sobre o estado
emocional em que me encontro me veio a lembrança um autor, uma obra, várias
obras e consequentemente a dificuldade de se contar a sua própria história, uma
angústia semelhante a vivida pelo narrador de uma das mais importantes obras da
literatura brasileira: Grande Sertão:Veredas do escritor mineiro João Guimarães
Rosa. Nessa obra prima temos uma narrativa que se constrói a partir do diálogo
entre o ex-jagunço Riobaldo e um interlocutor que jamais tem a palavra e cuja
fala é apenas sugerida, nesse "diálogo monológico" o velho Riobaldo narra a
histórias de vingança, violência, amores e perseguições, tudo isso entremeados
de profundas reflexões sobre o ser e a condição humana. Os demais personagens
falam pela boca de Riobaldo que se vale de um estilo de narrar e de
características linguísticas individuais, Guimarães Rosa usou não só a linguagem
simples do sertanejo como a misturou com uma linguagem extremamente erudita que
dominava, tudo isso para demonstrar que a cultura popular não só não é inferior
a erudita como esta é vazia quando não reconhece o valor daquela. O tempo
passado confunde os acontecimentos na mente do narrador, impedindo-o de separar
o falso do verdadeiro, o vivido do imaginado. Essa opção pelo monólogo de
caráter memorialista implica, no plano da narrativa, a distribuição caótica da
memória. Dessa forma a linguagem assume, para o narrador, um poder mágico. Falar
a própria vida constitui a matéria narrativa do romance, mas as dificuldades do
viver e do narrar distorcem as duas práticas e por isso acabam criando um texto
ambíguo, tão enigmático quanto a vida, onde tudo é e não é, simultaneamente. Em
meio a jagunços, assassinatos e perseguições que constituem um dos fios da
narrativa, existe também o plano amoroso, o amor de Riobaldo por Diadorim é uma
espécie de segunda batalha travada pelo personagem que, diferente daquela
travada externamente contra os inimigos, é travada internamente contra um
inimigo invencível e incompreensível. De maneira geral o romance nos aponta para
o plano de vida da jagunçagem, que nos permite compreender componentes
geopolíticos, sociais e econômicos do sertão, além do plano das reflexões,
criado pelos temores de Riobaldo velho, revendo e avaliando o passado e sua
própria vida. encontramos no romance também um plano mítico, centrado nos
conflitos representados pelas forças da natureza e na reflexão sobre a
existência do diabo: "Mas,
não diga que o senhor, instruído, que acredita na pessoa dele? Não? Lhe
agradeço! Sua alta opinião compõe minha valia. Já o campo! Ah, a gente , na
velhice, carece de Ter sua aragem de descanso. Lhe agradeço. Tem diabo nenhum.
Nem espírito, Nunca vi. Alguém devia de ver, então era eu mesmo, este vosso
servidor. Fosse lhe contar... Bem , o diabo regula seu estado preto, nas
criaturas, nas mulheres, nos homens. Até : nas crianças- eu digo. Pois não é
ditado:' menino- trem do diabo'? E nos usos , nas plantas , nas águas, na terra,
no vento... Estrumes....O diabo na rua , no meio do
redemoinho"
Ah! você deve estar me perguntando o
que a música tem a ver com o Grande Sertão, pois é, o romance é construído de
forma extremamente poética, na qual podemos notar uma musicalidade latente. Se
lido em voz alta o efeito é totalmente diverso de uma leitura silenciosa, não
quanto a compreensão mas em relação a os efeitos de musicalidade proporcionados
pela linguagem roseana, de resto há música mesmo no silêncio. Assim como
Riobaldo todos nós travamos uma batalha com o passado, no viver e no
contar.
(Texto: Nilton Aquino)