Noel Rosa foi o grande modernizador da música popular brasileira. Vivendo na época em que a indústria fonográfica começa a expandir a música para grandes públicos, o compositor oriundo da classe média e ex-estudantes de medicina foi um dos responsáveis pelo samba deixar ser um batuque relegado ao fundo do quintal da Tia Ciata e outras famílias (na sala principal tocava-se
chorinho)ou aos morros e assumir o padrão de música símbolo dos sentimentos das
diferentes classes de um país que precisava repensar-se enquanto nação. A
música popular brasileira (não confundir com música de massas, que é outro
papo) tal qual a conhecemos hoje é fruto, sobretudo, da obra do poeta da Vila.
Sua linguagem coloquial, sua abordagem dos diferentes sentimentos das
diferentes classes, seu humor requintado (como definiu Bernard Shaw: aquele que
arrasta uma lágrima com a risada), suas melodias em consonância com as letras,
suas crônicas da vida carioca dos anos 30, seu talento para
criar em vários estilos e mesmo assim se manter
ligado ao samba, sua aversão -sem xenofobia - a estrangeiros, tudo em Noel era
moderno. Moderno e original. Sem se prestar ao papel de compositor oficial -
papel que muitos sambistas adotaram ao passar a compor, em troca de um bom
apoio, letras que estivessem em sintonia com a ideologia do Estado getulista -
o filósofo de Vila Isabel se manteve independente e original até o fim de sua
curta vida. Foram necessários apenas 26 anos para que virasse a música
brasileira de pernas pro ar, fazendo-a evoluir como nunca, e deixasse um legado
de quase trezentas canções.
Almir Chediak também teve vida curta. Viveu pouco mais de quarenta anos. Assim como Noel foi vítima da doença de seu tempo. Noel morreu da incurável tuberculose. Chediak foi vítima da violência urbana. E se o filósofo do samba deixou uma vasta obra de canções populares, o professor de violão, arranjador e compositor de trilhas deixou seus preciosos songbooks, livros musicais, lançado pela sua editora "Lumiar" que decodificavam as obras dos grandes nomes da nossa música, revelando em detalhes suas partituras e conceitos a partir do ponto de vista do próprio compositor. A idéia surgiu na casa de Caetano Veloso, enquanto Almir dava aulas de violão a Moreno, filho do cantor. Quando foi a vez de criar o de Noel, o organizador pediu a vários compositores da música brasileira de então que dessem concepções mais atuais ao trabalho do compositor, falecido há mais de cinquenta anos. Foi quando Moraes Moreira sugeriu que gravassem um disco com cada um dando sua versão de cada música. Nascia assim o primeiro do extenso catálogo de songbooks gravados e lançados pela "Lumiar discos".
Lançado em 1991, "Songbook Noel Rosa", o disco, reúne uma verdadeira constelação da música brasileira. A linha evolutiva traçada pelo talento do jovem de Vila Isabel encontra ali seus resultados. O disco abre com Tom Jobim dando sua visão de "Três apitos". O compositor carioca, que tem na sua bossa-nova a continuação natural da modernização de Noel, recria, com seu natural requinte e sofisticação, o samba-crônica que trata de um Brasil que deixa de ser rural para se modernizar com fábricas de tecido, buzinas de carro, operárias e tudo mais. Tom aparecerá de novo cantando "João Ninguém", canção em que o poeta retrata os tipos que não eram nem operários nem burgueses, os marginalizados pelo sistema. "Gravei essa música porque no Brasil hoje todo mundo é João Ninguém", fuzilou o maestro na época das gravações. Os tropicalistas Gilberto Gil, Caetano Veloso e Gal Costa também marcam presença. Gil com o clássico "Com que roupa?", primeiro sucesso do compositor datado de 1930, que tinha em seus compassos iniciais uma referência ao hino nacional (levemente substituídos para evitar problemas com a ditadura Vargas) e cuja letra mostra de maneira irônica como ficou a situação do país após a crise de 29; Caetano faz uma versão joãogilbertiana de "Meu barracão" desnudando o fio condutor que une Noel, Bossa-Nova e Tropicália; Gal Costa coloca sua bela voz, acompanhada pelo preciso violão de Marco Pereira, a serviço de "Último desejo", primorosa canção, exemplo inconteste da habilidade do jovem músico de combinar perfeitamente letra e melodia, cuja partitura foi ditada pelo artista em seu leito de morte como um recado para sua amada Ceci. Chico Buarque, que no início de sua carreira chegou a ser comparado ao filósofo do samba tanto pelo conteúdo quanto pela forma de suas letras, aparece com sua irmã Cristina cantando "Cem mil réis", samba feito com seu frequente parceiro, o pianista paulista, Vadico, o preferido de Sergio Buarque de Holanda. João Nogueira, sambista que cultivava a malandragem do sambista dos tempos de Noel, aparece em três momentos: sozinho em "Conversa de botequim", uma das mais bem feitas crônicas da música brasileira que estampa em seus versos hábitos, linguagens e personagens da vida carioca de então, e "Não tem tradução", obra-prima que aponta a participação do cinema falado - arma usada pelos Estados Unidos para espalhar o seu way of life pelo mundo - na descaracterização de costumes e falas nacionais (Mario de Andrade deve ter vibrado com essa!) terminando com o imortal verso, "Tudo aquilo que o malandro pronuncia com voz macia é brasileiro já passou de português", nada mais brasileiro, e o que é melhor, sem precisar ser xenófobo ou ufanista; Nogueira aparece também acompanhado de Luiz Melodia, compositor nascido e criado no bairro Estácio de Sá e que possui com o bairro a mesma identificação que Noel tinha com a sua Vila isabel, cantando "Feitio de Oração", clássico da nossa música popular que afirma o samba como uma expressão da sociedade brasileira como um todo e não exclusiva de uma ou outra classe ("O samba na realidade não vem do morro nem lá da cidade..."). Melodia volta a aparecer, dessa vez acompanhado pelo bossanovista Carlos Lyra, em "O X do problema", samba aonde o poeta enaltece o Estácio como reduto de sambistas (e, portanto, de identidade nacional) e repele a moda de estrangeirismos que invadia o país ("e não acredito que haja muamba que possa fazer eu gostar de você"). Lyra também aparece acompanhando Veronica Sabino em "O orvalho vem caindo"; Maria Bethânia, enaltecedora costumas da obra de NR e que teve em Aracy de Almeida, a grande intérprete de Noel Rosa e que ajudou a resgatar sua memória na década de 50 gravando o histórico "Aracy canta Noel", uma grande amiga na época em que chegou ao Rio, faz uma interpretação estonteante da bela "Pela décima vez". O, então, pescador de pérolas, Ney Matogrosso, acompanhado do primoroso violão de Raphael Rabello e do piano de Francis Hyme, lança seu olhar sobre "Feitiço da Vila", declaração de amor do poeta ao bairro em que sempre viveu, feita durante a famosa polêmica com Wilson Batista - o entrevero só ficou conhecido do grande público depois de ter sido lançado em 1956 pela Odeon, o 10 polegadas "Polêmica entre Wilson Batista e Noel Rosa". O disco contém outro fruto da pendenga - episódio que de certa forma contribuiu para universalização do samba, entre o branco de classe média ,malandro medroso, compositor de relativo sucesso cuja a malandragem era mais uma postura anti-sistema (preferia ser chamado de rapaz folgado) e o negro de navalha no bolso e lenço no pescoço, o tipo de malandro que o outro gostaria de ter sido: "Palpite infeliz" cantada pela sexta geração do conjunto vocal "Os Cariocas". João Bosco, que teve como parceiro constante um outro grande poeta da Vila, mostra que sua familiaridade com onomatopeias faz dele o intérprete ideal para a genial "Gago apaixonado", Moraes Moreira leva as marchinhas de Noel para o carnaval da Bahia com sua interpretação de "As pastorinhas", composta em parceria com João de Barro, companheiro dele no Grupo dos Tangarás, responsáveis pela primeira gravação de um samba com a inclusão de instrumentos de percussão - até então não usados em sambas gravados (É...ele fez mais essa!); Cassiano coloca "Pra que mentir" no universo do "Soul Brasil", Djavan só precisa da sua voz e seu violão para recriar de forma magistral "Tarzan, o filho do alfaiate", Roberto Menescal empresta seu violão bossa-nova para "Quando o samba acabou" desfilar na voz de Leila Pinheiro, Jards Macalé aparece com suas harmonias inusitadas no belo poema "Cor de cinza", o violão de Rafael Rabello reaparece acompanhando a voz barítono de Nelson Golçalves em "Pra esquecer" e o rockeiro Eduardo Dusek encerra em grande estilo dando novos tons à obra-prima "Quem dá mais?",uma irretocável crítica ao leilão de coisas tipicamente nacionais, promovido pelo "modernizador" Estado varguista para escapar da crise ao mesmo tempo em que procurava firmar a identidade do país ("Quem dá mais/ por um violão que toca em falsete/ que só não tem braço, fundo e cavalete pertenceu a Dom Pedro/morou no palácio/foi posto no prego por José Bonifácio?").
Faltaram músicas (Filosofia, Coisas Nossas), faltaram artistas (Martinho da Vila, Paulinho da Viola), mas não se pode ter tudo.E como concluiu o soberano maestro Jobim: "Noel deve estar contente em ver tanta gente boa tocando sua obra". Depois desse, vieram outros mais abrangentes e completos ( o de Chico Buarque tem seis volumes). Não podemos saber aonde a obra de Noel e, consequentemente, a música brasileira poderiam chegar, caso ele tivesse vivido mais. No entanto, Chediak ao produzir esse álbum duplo, inaugurador do grande resgate de importantes obras e compositores, nos dá preciosas pistas. Mais que um disco, um documento. Uma justa reverência de alguns de nossos mais importantes artistas musicais ao maior gênio da Música Popular Brasileira.
Almir Chediak também teve vida curta. Viveu pouco mais de quarenta anos. Assim como Noel foi vítima da doença de seu tempo. Noel morreu da incurável tuberculose. Chediak foi vítima da violência urbana. E se o filósofo do samba deixou uma vasta obra de canções populares, o professor de violão, arranjador e compositor de trilhas deixou seus preciosos songbooks, livros musicais, lançado pela sua editora "Lumiar" que decodificavam as obras dos grandes nomes da nossa música, revelando em detalhes suas partituras e conceitos a partir do ponto de vista do próprio compositor. A idéia surgiu na casa de Caetano Veloso, enquanto Almir dava aulas de violão a Moreno, filho do cantor. Quando foi a vez de criar o de Noel, o organizador pediu a vários compositores da música brasileira de então que dessem concepções mais atuais ao trabalho do compositor, falecido há mais de cinquenta anos. Foi quando Moraes Moreira sugeriu que gravassem um disco com cada um dando sua versão de cada música. Nascia assim o primeiro do extenso catálogo de songbooks gravados e lançados pela "Lumiar discos".
Lançado em 1991, "Songbook Noel Rosa", o disco, reúne uma verdadeira constelação da música brasileira. A linha evolutiva traçada pelo talento do jovem de Vila Isabel encontra ali seus resultados. O disco abre com Tom Jobim dando sua visão de "Três apitos". O compositor carioca, que tem na sua bossa-nova a continuação natural da modernização de Noel, recria, com seu natural requinte e sofisticação, o samba-crônica que trata de um Brasil que deixa de ser rural para se modernizar com fábricas de tecido, buzinas de carro, operárias e tudo mais. Tom aparecerá de novo cantando "João Ninguém", canção em que o poeta retrata os tipos que não eram nem operários nem burgueses, os marginalizados pelo sistema. "Gravei essa música porque no Brasil hoje todo mundo é João Ninguém", fuzilou o maestro na época das gravações. Os tropicalistas Gilberto Gil, Caetano Veloso e Gal Costa também marcam presença. Gil com o clássico "Com que roupa?", primeiro sucesso do compositor datado de 1930, que tinha em seus compassos iniciais uma referência ao hino nacional (levemente substituídos para evitar problemas com a ditadura Vargas) e cuja letra mostra de maneira irônica como ficou a situação do país após a crise de 29; Caetano faz uma versão joãogilbertiana de "Meu barracão" desnudando o fio condutor que une Noel, Bossa-Nova e Tropicália; Gal Costa coloca sua bela voz, acompanhada pelo preciso violão de Marco Pereira, a serviço de "Último desejo", primorosa canção, exemplo inconteste da habilidade do jovem músico de combinar perfeitamente letra e melodia, cuja partitura foi ditada pelo artista em seu leito de morte como um recado para sua amada Ceci. Chico Buarque, que no início de sua carreira chegou a ser comparado ao filósofo do samba tanto pelo conteúdo quanto pela forma de suas letras, aparece com sua irmã Cristina cantando "Cem mil réis", samba feito com seu frequente parceiro, o pianista paulista, Vadico, o preferido de Sergio Buarque de Holanda. João Nogueira, sambista que cultivava a malandragem do sambista dos tempos de Noel, aparece em três momentos: sozinho em "Conversa de botequim", uma das mais bem feitas crônicas da música brasileira que estampa em seus versos hábitos, linguagens e personagens da vida carioca de então, e "Não tem tradução", obra-prima que aponta a participação do cinema falado - arma usada pelos Estados Unidos para espalhar o seu way of life pelo mundo - na descaracterização de costumes e falas nacionais (Mario de Andrade deve ter vibrado com essa!) terminando com o imortal verso, "Tudo aquilo que o malandro pronuncia com voz macia é brasileiro já passou de português", nada mais brasileiro, e o que é melhor, sem precisar ser xenófobo ou ufanista; Nogueira aparece também acompanhado de Luiz Melodia, compositor nascido e criado no bairro Estácio de Sá e que possui com o bairro a mesma identificação que Noel tinha com a sua Vila isabel, cantando "Feitio de Oração", clássico da nossa música popular que afirma o samba como uma expressão da sociedade brasileira como um todo e não exclusiva de uma ou outra classe ("O samba na realidade não vem do morro nem lá da cidade..."). Melodia volta a aparecer, dessa vez acompanhado pelo bossanovista Carlos Lyra, em "O X do problema", samba aonde o poeta enaltece o Estácio como reduto de sambistas (e, portanto, de identidade nacional) e repele a moda de estrangeirismos que invadia o país ("e não acredito que haja muamba que possa fazer eu gostar de você"). Lyra também aparece acompanhando Veronica Sabino em "O orvalho vem caindo"; Maria Bethânia, enaltecedora costumas da obra de NR e que teve em Aracy de Almeida, a grande intérprete de Noel Rosa e que ajudou a resgatar sua memória na década de 50 gravando o histórico "Aracy canta Noel", uma grande amiga na época em que chegou ao Rio, faz uma interpretação estonteante da bela "Pela décima vez". O, então, pescador de pérolas, Ney Matogrosso, acompanhado do primoroso violão de Raphael Rabello e do piano de Francis Hyme, lança seu olhar sobre "Feitiço da Vila", declaração de amor do poeta ao bairro em que sempre viveu, feita durante a famosa polêmica com Wilson Batista - o entrevero só ficou conhecido do grande público depois de ter sido lançado em 1956 pela Odeon, o 10 polegadas "Polêmica entre Wilson Batista e Noel Rosa". O disco contém outro fruto da pendenga - episódio que de certa forma contribuiu para universalização do samba, entre o branco de classe média ,malandro medroso, compositor de relativo sucesso cuja a malandragem era mais uma postura anti-sistema (preferia ser chamado de rapaz folgado) e o negro de navalha no bolso e lenço no pescoço, o tipo de malandro que o outro gostaria de ter sido: "Palpite infeliz" cantada pela sexta geração do conjunto vocal "Os Cariocas". João Bosco, que teve como parceiro constante um outro grande poeta da Vila, mostra que sua familiaridade com onomatopeias faz dele o intérprete ideal para a genial "Gago apaixonado", Moraes Moreira leva as marchinhas de Noel para o carnaval da Bahia com sua interpretação de "As pastorinhas", composta em parceria com João de Barro, companheiro dele no Grupo dos Tangarás, responsáveis pela primeira gravação de um samba com a inclusão de instrumentos de percussão - até então não usados em sambas gravados (É...ele fez mais essa!); Cassiano coloca "Pra que mentir" no universo do "Soul Brasil", Djavan só precisa da sua voz e seu violão para recriar de forma magistral "Tarzan, o filho do alfaiate", Roberto Menescal empresta seu violão bossa-nova para "Quando o samba acabou" desfilar na voz de Leila Pinheiro, Jards Macalé aparece com suas harmonias inusitadas no belo poema "Cor de cinza", o violão de Rafael Rabello reaparece acompanhando a voz barítono de Nelson Golçalves em "Pra esquecer" e o rockeiro Eduardo Dusek encerra em grande estilo dando novos tons à obra-prima "Quem dá mais?",uma irretocável crítica ao leilão de coisas tipicamente nacionais, promovido pelo "modernizador" Estado varguista para escapar da crise ao mesmo tempo em que procurava firmar a identidade do país ("Quem dá mais/ por um violão que toca em falsete/ que só não tem braço, fundo e cavalete pertenceu a Dom Pedro/morou no palácio/foi posto no prego por José Bonifácio?").
Faltaram músicas (Filosofia, Coisas Nossas), faltaram artistas (Martinho da Vila, Paulinho da Viola), mas não se pode ter tudo.E como concluiu o soberano maestro Jobim: "Noel deve estar contente em ver tanta gente boa tocando sua obra". Depois desse, vieram outros mais abrangentes e completos ( o de Chico Buarque tem seis volumes). Não podemos saber aonde a obra de Noel e, consequentemente, a música brasileira poderiam chegar, caso ele tivesse vivido mais. No entanto, Chediak ao produzir esse álbum duplo, inaugurador do grande resgate de importantes obras e compositores, nos dá preciosas pistas. Mais que um disco, um documento. Uma justa reverência de alguns de nossos mais importantes artistas musicais ao maior gênio da Música Popular Brasileira.
(Leandro L.Rodrigues)
Muito bom o texto,adoro ler sobre música.
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