Em 1972, Gilberto Gil voltou do exílio londrino com força total. Lançou, no mesmo ano o antológico álbum ``Expresso 2222´´ (que merece resenha própria); em 1973, viveu um dos epsódios mais emblemáticos da música brasileira, quando seu microfone e o do parceiro Chico Buarque foi cortado durante a apresentação da musica ``Cálice´´, o que materializou a mensagem da obra; assumiu a direção musical de trabalhos de Gal Costa e Jorge Mautner e voltou ao topo das paradas com ``Eu Só Quero Um Xodó´´ e ``Maracatu Atômico´´. Em 75, depois de lançar um álbum magico ao lado de Jorge ben, ``Ogum e Xangô´´, entraria em estudio para dar forma a mais um clássico absoluto da música brasileira: Refazenda.
A capa, com o artista vestindo kimono e se alimentando de comida macrobiótica e cercado por uma teia repleta de símbolos religiosos, familiares e sociais, já indicava o conteúdo do álbum: Gil iria viajar para o interior de si mesmo, do país, da sua música, da sua fé. Iria refazer-se. Com um violão ao estilo Jorge Ben (parceiro cuja sintonia absoluta pode ser comprovada no álbum lançado no mesmo ano) e uma exuberante linha de baixo de Moacir Albuquerque (o baixista da turma toda nos anos 70), o popsambalanço "Ela" abre o álbum em alta voltagem com Gil refletindo sua relação com a música e a mulher amada. "Tenho sede" surge com o acordeon de Dominguinhos - que permeará todo álbum representando o interior do Nordeste também sempre presente nos contornos da alma do compositor de Ituaçu - e sua simplicidade aliados ao falsete mágico e o belo violão de Gil. "A planta pede chuva quando quer brotar, o seu logo escurece quando vai chover", diz a letra contemplativa bem em sintonia com a temática de questionamento, reflexão e observação das naturezas do álbum. A música título vem em seguida com sua melodia envolvente, emoldurada pela beleza do acordeon de Dominguinhos e a orquestração de Perinho Albuquerque, e sua letra controversa, um nonsense cheio de sentido onde abacateiros, patos, leões, tomates e mamões se juntam e se combinam culminando num trecho de "Mulher rendeira", a música composta pelo cangaceiro Lampião, e terminando com a palavra "Guariroba", que além de ser o nome de uma árvore,era também o nome de uma fazenda de um grupo de amigos do músico onde eles pensavam em formar uma comunidade alternativa. O artista seguiria o exemplo da natureza e deixaria a vida seguir seu fluxo, com momentos de recolhimento, momentos de fruto e momentos de aprender e outros de ensinar (Alguns interpretaram o abacateiro e seu ato como uma referência ao regime dos militares - hipótese possível, embora desmentida pelo compositor - mas simples demais para uma composição do Gil de então). Nota dez! "Pai e mãe" dá sequencia questionando os padrões conservadores de família e afetividade. Fala de maneira elegante sobre homossexualismo ("Eu passei muito tempo aprendendo a beijar outros homens como eu beijo meu pai") e a renovação dos valores familiares ("Minha mãe como vai?Como vão seu temores?") contornado pela flauta mágica de Altamiro Carrilho, um belo violão de 7 cordas de Dino e, claro, o acordeon de Dominguinhos. "Jeca total",composta, segundo o próprio, sob inspiração de ver a obra de Jorge Amado na Tv a cores ("Assistindo Gabriela viver tantas cores"), é uma primeira incursão do universo do compositor no mundo de Monteiro Lobato (mistura essa que resultaria na bem sucedida canção tema do programa "Sítio do Pica-Pau Amarelo" em 1977), Nesta Gil propõe a transformação do Jeca Tatu num Jeca Total. Uma transmutação nietzschiana do interiorano, alienado e acomodado personagem de Lobato que encontra seu ideal na figura do antenado poeta Jorge Salomão (também nascido no interior da Bahia e na ocasião figurando em Nova Iorque). "Essa é pra tocar no rádio" (também presente no disco-jam ao lado de Jorge) é uma representante das gravações do mal fadado projeto "Cidade de Salvador" (LP que Gil gravou para lançar em 1973, mas, sabe-se lá porque, abandonou e o trabalho só veio à luz em 1999), com Rubão Sabino no baixo e Tutti Moreno na bateria, a letra questiona em tom de deboche os critérios de escolha dos programadores de rádio num jazz-funk na linha Miles Davis setentista totalmente em desacordo com o seu título. De todas as músicas do Lp, ela é a que tinha menos chance de tocar nas rádios. "Ê,povo, Ê" é um pop com sotaque nordestino com um belo trombone tocado por Bogado e que faria sucesso na trilha de qualquer telenovela (surpreendentemente nunca entrou em nenhuma). "Retiros espirituais" vem na sequencia com um belo trabalho de Gil usando pedais na sua guitarra num poema musicado que trata da filosofia taoísta do wu wei (ação sem ação) e cannabis. Um belo momento de introspecção que o artista diz ser um de seus preferidos em toda sua obra. Em "O Rouxinol", música que viria a batizar o bem-sucedido álbum para o mercado norte-americano (The Nightingale) que o artista lançou em 78 sob a produção de Sergio Mendes, o pássaro de Sousândrade, o visionário poeta maranhense re-visto pelos concretistas irmãos Campos (Haroldo e Augusto) nos anos 60, reaparece na voz e na forma do transmutado Gilberto Misterioso insinuado por Caetano numa letra típica de Jorge Mautner acompanhada do ágil violão de Fredera. "Lamento sertanejo", letra de Gil para música feita por Dominguinhos, que declarou nos anos 2000 que "Refazenda" foi um dos discos mais bonitos no qual ele trabalhou, nos anos 60 , fecha o ciclo de maneira brilhante e emocionante. O navegador de "Ela" que saiu cheio de sede pelo mundo enfrentando procelas, questionando valores, fazendo-se e refazendo-se, vê-se num grande centro como uma rês desgarrada na boiada da cidade. Está contrariado, mas agora sabe qual é a real diferença e termina o trabalho em plena "Meditação" (talvez no mesmo tatami da capa) e com efeitos de pedal. "Tudo sempre acaba sendo o que era de se esperar", conclui.
Produzido por Mazolla, o interiorano "Refazenda" (passado) é o disco que inicia a famosa trilogia "Re" do compositor, em 77 viria o afro "Refavela" (presente) e em 79, o universal "Realce" (futuro), a patrulha ideológica criticou o trabalho pela falta de engajamento político, os conservadores continuaram torcendo o nariz para seu espírito libertário, mas a vida seguiu e o resultado do disco foi a consolidação do cantor como um nome de peso para a gravadora. Estava dado o pontapé inicial para uma trilogia clássica de uma carreira recheada de discos históricos.
A capa, com o artista vestindo kimono e se alimentando de comida macrobiótica e cercado por uma teia repleta de símbolos religiosos, familiares e sociais, já indicava o conteúdo do álbum: Gil iria viajar para o interior de si mesmo, do país, da sua música, da sua fé. Iria refazer-se. Com um violão ao estilo Jorge Ben (parceiro cuja sintonia absoluta pode ser comprovada no álbum lançado no mesmo ano) e uma exuberante linha de baixo de Moacir Albuquerque (o baixista da turma toda nos anos 70), o popsambalanço "Ela" abre o álbum em alta voltagem com Gil refletindo sua relação com a música e a mulher amada. "Tenho sede" surge com o acordeon de Dominguinhos - que permeará todo álbum representando o interior do Nordeste também sempre presente nos contornos da alma do compositor de Ituaçu - e sua simplicidade aliados ao falsete mágico e o belo violão de Gil. "A planta pede chuva quando quer brotar, o seu logo escurece quando vai chover", diz a letra contemplativa bem em sintonia com a temática de questionamento, reflexão e observação das naturezas do álbum. A música título vem em seguida com sua melodia envolvente, emoldurada pela beleza do acordeon de Dominguinhos e a orquestração de Perinho Albuquerque, e sua letra controversa, um nonsense cheio de sentido onde abacateiros, patos, leões, tomates e mamões se juntam e se combinam culminando num trecho de "Mulher rendeira", a música composta pelo cangaceiro Lampião, e terminando com a palavra "Guariroba", que além de ser o nome de uma árvore,era também o nome de uma fazenda de um grupo de amigos do músico onde eles pensavam em formar uma comunidade alternativa. O artista seguiria o exemplo da natureza e deixaria a vida seguir seu fluxo, com momentos de recolhimento, momentos de fruto e momentos de aprender e outros de ensinar (Alguns interpretaram o abacateiro e seu ato como uma referência ao regime dos militares - hipótese possível, embora desmentida pelo compositor - mas simples demais para uma composição do Gil de então). Nota dez! "Pai e mãe" dá sequencia questionando os padrões conservadores de família e afetividade. Fala de maneira elegante sobre homossexualismo ("Eu passei muito tempo aprendendo a beijar outros homens como eu beijo meu pai") e a renovação dos valores familiares ("Minha mãe como vai?Como vão seu temores?") contornado pela flauta mágica de Altamiro Carrilho, um belo violão de 7 cordas de Dino e, claro, o acordeon de Dominguinhos. "Jeca total",composta, segundo o próprio, sob inspiração de ver a obra de Jorge Amado na Tv a cores ("Assistindo Gabriela viver tantas cores"), é uma primeira incursão do universo do compositor no mundo de Monteiro Lobato (mistura essa que resultaria na bem sucedida canção tema do programa "Sítio do Pica-Pau Amarelo" em 1977), Nesta Gil propõe a transformação do Jeca Tatu num Jeca Total. Uma transmutação nietzschiana do interiorano, alienado e acomodado personagem de Lobato que encontra seu ideal na figura do antenado poeta Jorge Salomão (também nascido no interior da Bahia e na ocasião figurando em Nova Iorque). "Essa é pra tocar no rádio" (também presente no disco-jam ao lado de Jorge) é uma representante das gravações do mal fadado projeto "Cidade de Salvador" (LP que Gil gravou para lançar em 1973, mas, sabe-se lá porque, abandonou e o trabalho só veio à luz em 1999), com Rubão Sabino no baixo e Tutti Moreno na bateria, a letra questiona em tom de deboche os critérios de escolha dos programadores de rádio num jazz-funk na linha Miles Davis setentista totalmente em desacordo com o seu título. De todas as músicas do Lp, ela é a que tinha menos chance de tocar nas rádios. "Ê,povo, Ê" é um pop com sotaque nordestino com um belo trombone tocado por Bogado e que faria sucesso na trilha de qualquer telenovela (surpreendentemente nunca entrou em nenhuma). "Retiros espirituais" vem na sequencia com um belo trabalho de Gil usando pedais na sua guitarra num poema musicado que trata da filosofia taoísta do wu wei (ação sem ação) e cannabis. Um belo momento de introspecção que o artista diz ser um de seus preferidos em toda sua obra. Em "O Rouxinol", música que viria a batizar o bem-sucedido álbum para o mercado norte-americano (The Nightingale) que o artista lançou em 78 sob a produção de Sergio Mendes, o pássaro de Sousândrade, o visionário poeta maranhense re-visto pelos concretistas irmãos Campos (Haroldo e Augusto) nos anos 60, reaparece na voz e na forma do transmutado Gilberto Misterioso insinuado por Caetano numa letra típica de Jorge Mautner acompanhada do ágil violão de Fredera. "Lamento sertanejo", letra de Gil para música feita por Dominguinhos, que declarou nos anos 2000 que "Refazenda" foi um dos discos mais bonitos no qual ele trabalhou, nos anos 60 , fecha o ciclo de maneira brilhante e emocionante. O navegador de "Ela" que saiu cheio de sede pelo mundo enfrentando procelas, questionando valores, fazendo-se e refazendo-se, vê-se num grande centro como uma rês desgarrada na boiada da cidade. Está contrariado, mas agora sabe qual é a real diferença e termina o trabalho em plena "Meditação" (talvez no mesmo tatami da capa) e com efeitos de pedal. "Tudo sempre acaba sendo o que era de se esperar", conclui.
Produzido por Mazolla, o interiorano "Refazenda" (passado) é o disco que inicia a famosa trilogia "Re" do compositor, em 77 viria o afro "Refavela" (presente) e em 79, o universal "Realce" (futuro), a patrulha ideológica criticou o trabalho pela falta de engajamento político, os conservadores continuaram torcendo o nariz para seu espírito libertário, mas a vida seguiu e o resultado do disco foi a consolidação do cantor como um nome de peso para a gravadora. Estava dado o pontapé inicial para uma trilogia clássica de uma carreira recheada de discos históricos.
(Texto: Leandro L.Rodrigues)
Adoro o álbum e o artista,muito bem escrito o texto-crítico.
ResponderExcluir